Entre a Razão e a Imaginação: A Importância da Criança Interior
- psificando
- 23 de mai. de 2024
- 9 min de leitura

Se você tem mais do que trinta anos você inevitavelmente está passando por uma crise de identidade, sofre ao acordar, sofre no trabalho, sofre em casa, sofre no relacionamento ou sofre se não tem um relacionamento, tudo se torna sofrimento e dúvida, parece realmente um caminho sem saída, e muito provavelmente é se tentarmos "vencer" a vida com a razão.
Não que a razão seja algo simples, mas é uma parte limitada de nossa compreensão e apreensão do mundo a nossa volta.
Esta fase está envolta de revolta e culpa, culpamos-nos por sermos quem somos ou culpamos aqueles que nos criaram e ensinaram e nos prepararam para um mundo totalmente diferente com o qual nos deparamos agora, comumente nos voltamos para infância na busca por algo que deu errado, nos afogamos em memórias, desesperadamente reviramos nosso passado, perdemos as bordas e nos misturamos com ele, e por fim acabamos nos sentindo novamente crianças desamparadas tendo que aprender tudo de novo…
Para a psicologia analítica a criança é um símbolo de renovação e transformação, a criança é espontânea, curiosa e criativa, ao nos voltarmos para essa época de nossa vida resgatamos esse espírito inovador, porém ele vem completo, junto com medos e inseguranças típicas dessa fase. Dependendo de sua história essas inseguranças vem de maneira muito crua, busca o acolhimento e a compreensão que não teve, essa analogia se alinha muito com o que está muito popular hoje que chamam de "a criança ferida".
Jung chamava esse arquétipo da criança de puer aeternus, ou a eterna criança.
Esta criança interior vive em todos nós, e quando nos tornamos pais ela muitas vezes é projetada em nossos filhos, todos os sonhos frustrados acabam sendo transferidos, todas as nossas angústias ou partes da nossa personalidade não desenvolvida cria corpo em outro ser, assim entramos em conexão com nossa eterna criança interior de maneira concreta.
Essa nossa imagem muitas vezes encontrou-se reprimida por muito tempo, isso para podermos darmos conta da vida adulta.
Por isso facilmente tendemos a nos identificar com essa criança, as dores que tivemos torna-se delas e tentamos remediar, corrigir, acertar, preencher, mas esquecemos de sua subjetividade individual, que é diferente e separada da nossa, e está em ainda em formação, portanto a criatividade da criança pode as vezes por não se limitar à razão, encontrar soluções mais criativas para nossas próprias feridas emocionais.
As vezes eles tem outro tipo de atitude e percepção da vida muito diferente da nossa, inclusive nos questionam sem parar, essa é a magica da paternidade, nos deparamos com nossos próprios conceitos e dúvidas, com nossas próprias angústias e medos, se estivemos abertos aprendemos muito mais com eles do que eles com nós.
Não tenho filhos, mas uma coisa é certa, essa criança vive em mim, e todos nós temos uma, afinal todos já fomos criança um dia, olhar para ela com aceptividade pode trazer uma enorme energia de renovação, e um olhar de brincadeira em relação ao mundo.
Aliás neste momento olho para um pote com cascas de pistache e me pergunto: o que essa criança veria ali? Olhe só, milhares de pequenos botes! Podemos formar uma frota marítima! Quem sabe podemos brincar? Ou quem sabe ver a vida como uma grande brincadeira onde nossa criatividade vence o exército opositor, ou nos aliamos a eles e construímos um mundo melhor...
Apenas observar e fazer parte de nossas angústias, com o olhar da criança, sem buscar saídas dos problemas de nossa vida, possibilita ver que a vida não é mais um problema a ser solucionado, mas sim uma nova brincadeira a ser brincada.
O desafio agora é manter a brincadeira interessante pelo maior tempo possível, afinal você sabe como as crianças são, começam brincadeiras que podem levar horas, ou por outras vezes perdem interesse rapidamente e acabam escolhendo outra coisa para fazer. Acho que por isso é importante que a criança não escolha ou compre brinquedos, mas que ela os crie, isso dá vida e materialidade para as experiências.
Sabe aquela criança que está na escolinha e que está com todo esmero construindo seu trabalho, e alguém vem e muda alguma coisa, ou da um toque diferente aqui ou ali, e para ela isso estraga tudo!?
Pois é, para essa criança criar e transformar é dar forma a sua subjetividade, uma forma de expressão, e trazer a luz conteúdos inalcançáveis pelo discernimento da razão. É assim que a maioria dos introvertidos funcionam…. Para um extrovertido as vezes é importante apenas o objeto em si, independente do que se faça dele, mas para o introvertido o objeto é um reflexo de si mesmo materializado no mundo!
Pelo jeito descobrir o tipo da nossa criança (interna e externa) pode abrir rotas de aprendizado totalmente distintos.
Trazer sua criança de volta a vida pode ser uma grande experiência dependendo de como foi sua infância, o que mais ficou marcado em nós, a brincadeira ou o temor?
Ambas as partes precisam ser vistas e aceitas, aninhadas, cuidadas e afagadas, como adultos, trazemos força e segurança a e fazemos de nós mesmos nossos pais.
Esse assunto surgiu para mim como uma necessidade a ser trabalhada ao me deparar com uma notícia que me deixou um tanto chocado: O suicídio de crianças de 5 a 14 anos tem crescido muito nos últimos anos.
O que isso pode dizer sobre nós? O que podemos aprender com isso?
Como uma criança sem nenhuma noção do que é a vida se separa dela assim que ela começa a florescer?
Honestamente eu creio que tem mais a ver com os adultos que negam seus medos e anseios, ou que negam deixar morrer algo neles, um rancor, uma angústia, uma cena ou uma fase da vida, e com isso impedimos o florescer de nós mesmos, e quanto menos olhamos para isso mais o mundo sofre, pois a nossa dor é a dor do mundo, e o inconsciente das crianças está a mercê dos materiais inconscientes dos adultos que a rodeiam.
Para ilustrar vou trazer um caso aqui descrito no livro da Frances G. Wickes:
"A Sra. Comphret vivia nas escadas da adega. Ela era baixinha, rechonchuda e confortável, e estava sempre sorrindo. Ela usava um pequeno chapéu preto amarrado em um laço elegante sob o queixo. Tinha um ornamento de jato que se erguia na frente e tilintava quando ela andava ou acenava com a cabeça. Às vezes, ela se sentava na porta da adega ao sol e sorria. Quando os dias eram quentes, as portas da adega eram abertas e minha irmã e eu brincávamos nas escadas da adega com a Sra. Comphret. Ela não falava muito, mas era apenas confortável, sorridente, lenta e quieta. Gostávamos de sentir a sua presença ali. Eu nunca ia à escola ou a qualquer outro lugar sem parar para falar com a Sra. Comphret, ou se estivéssemos com muita pressa, pelo menos sussurrávamos um adeus.
Aida Paida era bem diferente. Ela também era adulta - aquela idade adulta muito incerta que significa qualquer estágio de antiguidade para as crianças - provavelmente cerca de trinta anos. Aida Paida não ficava em casa como a Sra. Comphret, mas ia conosco em todas as nossas caminhadas. Do outro lado da estrada, bem longe da casa, havia uma grande árvore de tília. Os galhos desciam quase até o chão, formando uma grande sala verde, e as raízes retorcidas faziam móveis. Não podíamos ir até a árvore de tília sem permissão, mas às vezes, em tardes ensolaradas, tínhamos permissão para fazer festas lá. Aida Paida sempre ia conosco. Ela se sentava em uma grande raiz nodosa e nós a servíamos com tortas de lama. Ir até a árvore de tília era uma aventura, mas sempre nos sentíamos bastante seguras com Aida Paida. Ela também caminhava conosco. Havia sempre um pequeno círculo de segurança ao redor de Aida Paida e nós nos movíamos dentro dele com ela. Coisas que poderiam nos pegar nunca conseguiam. Aida Paida nunca fazia nada com elas, mas elas nunca conseguiam nos alcançar. Ela as mantinha à distância.
Um dia, um vizinho morreu. Houve um funeral, um "funeral" como nós, crianças, chamávamos. Ficamos muito impressionados com a solenidade e o silêncio. Não era muito real para nós, exceto como um pedaço impressionante de drama, mas dessa forma parecia muito misterioso e importante. Então, um dia, a Sra. Comphret morreu e teve um "funeral". Foi estranho vê-la partir, mas ela nunca voltou. Eu sabia que ela nunca voltaria. Aida Paida ficou um pouco mais e depois simplesmente desapareceu. Não consigo lembrar como ela foi, mas tenho certeza de que ela não morreu. Ela apenas se afastou e finalmente desapareceu completamente.
Por mais caprichosa e encantadoramente peculiar que essa fantasia seja, descobrimos que ela tem um significado mais profundo. Quando estudamos sua razão de ser, descobrimos que foi chamada à existência por causa de uma necessidade psicológica. Esta criança sentia a falta de certas coisas em seu relacionamento com sua mãe. A mãe era, como a Sra. Comphret, uma mulher pequena, mas não havia descanso rechonchudo, nem sorriso tranquilo. Em vez disso, ela era alerta, rápida, dominante. A próxima coisa a ser feita precisava ser feita imediatamente. Não importava onde o desenvolvimento de um jogo importante estivesse, era hora, naquele momento, de sair, lavar as mãos ou guardar as coisas. Algo estava sendo construído no mundo da criança, talvez estivesse quase concluído. Era intensamente, absorventemente importante, mas tinha que ser varrido, demolido, porque "estávamos indo até a loja" ou "o jantar estava pronto". A voz de sua mãe era rápida, carregada de energia nervosa, imensamente perturbadora. Ela interrompia a brincadeira ou a fantasia com uma persistência irritante. Ela sempre pretendia gostar muito da mãe, mas antes de conseguir, a voz interrompia algo muito importante e então ela ficava com raiva e muito distante. Ela "adorava" seu pai. Ele era lento e tranquilo. Se eles iam a algum lugar, ele entrava com antecedência e dizia: "Vamos sair em meia hora."
"Você tem que estar de banho tomado em cerca de quinze minutos." Ou, "Faltam dez minutos para a hora de dormir." Com a mãe, tudo tinha que ser feito às pressas, os brinquedos eram recolhidos de qualquer maneira e imediatamente. A criança também era muito nervosa. Os nervos agitados da mãe faziam os dela ficarem agitados com a mesma discórdia. A tranquilidade do pai a acalmava. Ele era fazendeiro e ela adorava andar pelos campos atrás dele, usando sapatos de menino, fingindo apaixonadamente que era um menino. Mas, afinal, ela também era muito menina e gostava das coisas de menina. Ela gostava da escola de dança e gostava de ser admirada pelos meninos. Muito cedo ela teve um menino especial que gostava de considerar como seu. À medida que crescia, o amor intenso por seu pai aumentava.
Ela e sua mãe faziam tentativas conscientes de estabelecer um relacionamento, mas nunca conseguiam ultrapassar essas barreiras intangíveis. A Sra. Comphret era a personificação das coisas que ela queria em uma mãe e não encontrava. Gradualmente, à medida que o relacionamento com seu pai se tornava mais satisfatório, a necessidade diminuía e a Sra. Comphret se tornava menos importante.
Aida Paida era uma figura menos importante. Ela lembrava vagamente uma tia que às vezes vinha visitá-los. Ela os levava para festas debaixo da árvore de tília, festas com biscoitos de verdade em vez de tortas de lama. Na sua ausência, Aida Paida assumia seu lugar como guardiã. Ela era uma pessoa de feriados, mas não tão necessária quanto a Sra. Comphret. Quando ela podia andar pelos campos com seu pai ou ir mais longe com sua irmã, Aida Paida desaparecia. Ela também se tornava desnecessária quando o pai preenchia seu lugar.
Conscientemente, a criança não sentia falta de nada, já que seu pai preenchia o lugar de pai e mãe em seus afetos. Mas um único relacionamento não deve ser chamado a carregar um duplo significado. Ele se torna sobrecarregado. Os laços no inconsciente se tornam difíceis de romper. Esta jovem mulher disse que nunca se casou porque nunca encontrou um homem que se comparasse ao seu pai. Ela tinha muitos amigos homens, mas nenhum que a entendesse como ele. Se o lugar da Sra. Comphret pudesse ter sido preenchido por sua mãe através de uma mudança no relacionamento mãe-filha, não haveria um excesso de emoção transferido para o pai. Então teria sido possível para ela aceitar o relacionamento amoroso adulto normal em seu devido tempo.
Não podemos culpar a mãe por não entender o significado da fantasia, assim como por não compreender o rádio ainda não inventado. Vinte anos atrás, alguém teria rido da ideia de atribuir importância psicológica a um pedaço de fantasia. A mãe não era negligente. Ela estava ocupada atendendo às necessidades da casa como ela as via. Era lamentável que ela e esta filha pequena "se incomodassem". Isso não acontecia com a outra criança, mais tranquila. Infelizmente, sua semelhança, em vez de criar uma maior compreensão, acentuava as dificuldades de cada uma. Se o significado da Sra. Comphret (que era uma pessoa bem conhecida da mãe) pudesse ter sido explicado, poderia ter evitado que ela estivesse sempre tão "preocupada e ansiosa com muitas coisas"; e, em vez disso, ela poderia ter encontrado tempo para aquela tranquilidade em que os relacionamentos, como outros frutos do espírito, podem crescer.
Frequentemente, essa fantasia de si mesmo ou personalidade dupla é projetada em algum brinquedo ou outro objeto. Meninas frequentemente usam bonecas para esse propósito. "
Espero que esse pequeno texto demonstre de maneira suficiente a importância que devemos dar as crianças, seja a nossa criança interior fruto de nossa história pessoal, quanto as crianças de carne e osso de nosso convívio familiar, priminhos, sobrinho ou nossos filhos.
Se esse assunto te interessa ou você quer descobrir qual o tipo de sua criança deixe seu comentário aqui ou no instagram para continuarmos essa conversa por lá.
Brunno Germani Daminelli



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